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revista

Na sala de música da casa de madeira da rua de piçarra 
ouvem-se acordes de música. Sons estranhos, ruídos 
soturnos, roncos, batimentos, sopros, arranhar de cordas, 
gemidos, resfôlegos; atonalidades. Tais sons são produzi-
dos por quatro contrabaixos. O dono da casa, Amaral 
Tedesco, um senhor de setenta e um anos, vira-se para o 
escritor Xandi Cabral com quem está a ouvir música, e diz:
- Sabe, Xandi, são duas coisas que sempre senti prazer de 
fazer: ouvir música e escrever.
- É? – pergunta indiferente e seco o escritor anarquista.
- É – responde o musicófilo, animando-se. – Ouço música 
mais de quatro horas...
- Todos os dias?
- Todos os dias. Um pouco de manhã, depois das oito, e um 
tanto mais à tarde, geralmente até às dezessete horas.
- Mas você nunca estudou música, estudou?
- Não. Não tive oportunidade, e até hoje lamento. Quando 
eu era criança, meu pai não possuía recursos para pagar as 
aulas. Agora, que eu próprio tenho os recursos, sinto-me 
velho, então acho que não dá mais. Mas ouço bastante 
música; acho que é uma forma de compensação. E também 
leio e escrevo sobre música. Aliás, no momento, escrever é 
meu interesse maior. Sempre estou escrevendo alguma 
coisa, até mesmo enquanto escuto música.
- Você nunca publicou nada?
- Nunca.
- Nisso estamos empatados.
- Ora, você pelo menos publicou um...
- É verdade. Mas sobre o que você está a escrever agora?
- Uma espécie de enquete...
- Enquete?
- Um conto curto, só com diálogos. Narro uma reunião de 
pessoas em redor de uma mesa de comes e bebes, mais 
bebes do que comes, cada uma a declinar, e justificar, os 
dez compositores eruditos da preferência. Mas preferência 
mesmo, somente os compositores que cada um ouve 
diariamente.
- Diariamente, não digo, mas ouço uma vez por semana 
pelo menos três compositores: Bach, Beethoven e Mozart.
- Pois eu achava que você curtia também Monteverdi. Fala 
com tanto entusiasmo de L`Orfeo?
- E curto. L`Orfeo é uma obra de gênio: primeira ópera 
sinfônica da história. Mas aqueles três, Bach, Beethoven e 
Mozart são os meus preferidos do dia a dia. De Bach, o que 

mais ouço são as Suítes para violoncelo solo.Tenho 
gravações com três violoncelistas, inclusive a gravação de 
Anner Bylsma, que utiliza um violoncelo barroco. Sabe? O 
celo barroco é três centímetros mais comprido do que os 
violoncelos modernos, e a corda de Lá é de pura tripa de 
carneiro. Produz um som muito especial: um som roufenho 
resinífero quase sem harmônicos, muito próximo da viola 
da gamba. Também ouço com frequência as Sonatas e 
Partidas para violino desacompanhado. E até podia incluir 
os Concertos de Bandenburg. De Beethoven, gosto muito 
das Sonatas para piano e dos quartetos de cordas, com 
preferência especial para os do Opus 18...
- Você não gosta dos quartetos finais? 
- Gosto. Mas gosto mais dos primeiros, são mais mozartia-
nos. Ouço também com alguma frequência um dos cinco 
concertos para piano, mas aqui, só se executados em piano 
da época. Adoro o som do pianoforte, um instrumento com 
teclado derivado do cravo mas com martelos baseados no 
dulcimer. 
- Você não ouve as sinfonias de Beethoven?
- Pouco. Gosto mais da sua música de câmera.
- Engraçado...
- Engraçado o quê?
- Um escritor moderno... E de Mozart?
- De Mozart gosto de tudo, até das óperas.
- Qual a ópera dele que você mais gosta?
- Idomeneo.
- Idomeneo? Eu pensei que fosse Don Giovanni, considera-
da a obra-prima de Mozart?
- Pois pensou errado. A obra-prima de Mozart, para mim, é 
Idomeneo. 
- Por quê?
- É mais, digamos, uma obra ideológica. Entenda-me: há 
uma pequena particularidade situacional que envolve 
essas duas peças que, pelo menos para mim, pode ter 
influído na escolha dos temas, marcando-lhes o caráter 
ideológico. Veja: nos dias em que ensaiava a primeira, 
Mozart escreveu ao pai: “... mas o príncipe e a orgulhosa 
nobreza tornam-se cada vez mais insuportáveis.”, ao passo 
que seu estado de espírito era outro quando compôs Don 
Giovanni. Nesta ocasião, ele escreveu ao seu amigo e 
provedor financeiro Gottfried von Jacquin: “... porque 
pertenço demais a outras pessoas, e muito pouco a mim 
mesmo. Não preciso lhe dizer que esta não é a vida que