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prefiro.” 
- Só por isso?
- Entenda, Xandi: essa contradição íntima, entre a necessi-
dade (nascida talvez da relação paterna) de galgar à 
nobreza, de ser ele também um nobre, e o que lhe consentia 
essa mesma nobreza, ou seja, de ser Mozart apenas um 
músico a serviço da nobreza, ainda que talentoso – 
espelhada de forma muito nítida  nos desabafos epistola-
res ao pai –, para mim, repito, marca a escolha dos temas 
das duas óperas, e também as partituras. Enquanto em 
Idomeneo Mozart é sinfônico em todos os atos, em Dom 
Giovanni só consegue sê-lo no final do terceiro ato. No 
resto da ópera a música segue o texto como coadjuvante. 
Naquela, talvez recebendo a influência de Monteverdi, ele 
como que abre caminha para Berlioz e Wagner, em cujas 
óperas a música é quase sempre o principal, jamais é 
acompanhante. Nesta, segue a escola italiana, em que as 
árias, representando as pessoas, são o principal e nunca o 
contexto social, representado pelos coros.
- Taí. É, quando nada, uma explicação original...

Amaral Tedesco e Xandi Cabral estão sentados no sofá de 
quatro lugares da sala de musica de Amaral: uma vasta 
dependência especialmente construída para a finalidade 
da reprodução eletrônica do som musical. Um retângulo 
medido quatro metros e oitenta centímetros de largura por 
sete metros e cinquenta centímetros de comprimento, 
para três metros de altura – medidas que o dono da casa, 
vaidoso de suas instalações, chama de proporção áurea, 
uma “constante real algébrica irracional denotada pela 
letra grega φ (PHI), em homenagem ao escultor Phideas 
(Fídias), que a teria utilizado para conceber o Parthenon, e 
com o valor arredondado a três casas decimais de 1,618”, 
segundo a Wikipédia. 
A sala possui paredes duplas de madeira – costaneiras de 
cedro –, menos a dos fundos, que é de tijolo maciço 
aparente. “- Para servir de refletor e painel de sustentação 
para os alto-falantes destinados à reprodução das frequên-
cias baixas.”, costuma explicar, professorando, Amaral. 
“As três paredes de madeira possuem uma particularidade, 
são entremeadas com cinco centímetros de areia de rio, 
formando uma espécie de sanduíche.” Amaral explica que 
tal arranjo se destina a evitar as vibrações da madeira, e, 
em conseqüência, ressonâncias indesejáveis. 

- Essa sala não podia ser mais larga?
- Não, se o pé-direito é de apenas três metros. Para evitar 
nódulos de ressonâncias, sabe? – responde com entusias-
mo. O tamanho de uma sala de música não deve ser 
arbitrário nem fortuito. Tem que obedecer a certa propor-
ção: para cada metro de pé-direito, um vírgula seis metro 
para largura e dois vírgula cinco metros para o comprimen-
to.
- Por que você não escreve um livro sobre a reprodução do 
som musical nas condições domésticas? – inquire o 
escritor, que sempre faz a pergunta toda vez que o amigo 
fala dos parâmetros técnicos de sua sala.
Mas Xandi Cabral já conhece a resposta e por isso, sem 
esperar ouvi-la de novo, acomoda-se melhor no assento, 
cerra os olhos e concentra-se na música, tentando 
entendê-la.

O dono da casa é homem de estrutura baixa, cabeça de 
nordestino – chata e grande –, rosto oval, olhos dilatados e 
vivos. Passou dos setenta anos. Possui largo bigode e 
barbicha, ambos embranquecidos. Ainda lépido, levanta-
se e abaixa-se com extrema facilidade. É irrequieto.

A casa onde mora possui oito cômodos, além da dependên-
cia de lazer: um módulo à parte da residência, metade 
ocupada com a sala de música e metade com o ateliê de 
pintura da mulher, Anita Tedesco, artista surrealista de 
lavra inconsciente, do gênero fantástico.

A sala de Amaral Tedesco é famosa no meio intelectual da 
cidade. O escritor Xandi Cabral é o seu mais assíduo 
frequentador.
- Você possui a mais supimpa sala de música de Ilhópolis – 
comenta Xandi, com seu jeito esnobe de falar -, talvez a 
única veramente estruturada para ouvir-se música. As 
outras que conheço são tão somente espaços adaptados.
- Também na ilha só existe a minha...
- Certo. Mas incluo na lista as salas públicas. O nosso maior 
e mais importante teatro, por exemplo, apesar das 
custosas reformas porque há passado, é dotado de péssima 
acústica. E o terror dos artistas, que reclamam contra a 
falta de retorno, o que dificulta a orientação em cena. E o 
som do cinema? Desse nem é bom falar; é simplesmente 
horrendo. Mas não é por esse motivo que sua sala é impar,