Primeiro subtítulo: 
Farrapos memorialísticos de uma longa viva vivida.

Segundo subtítulo: 
Verdades que só se dizem depois que se conquista imputa-
bilidade.

Terceiro subtítulo: 
Relembranças dos muitos livros que li.
Quarto subtítulo: 
Eu vi, e às vezes vivi!
CAPÍTULO PRIMEIRO E ÚNICO DO LIVRO I – No céu.

Onde: Quando voltei à consciência estava sob uma árvore 
de copa larga e fechada. Com vagar e ainda a sentir algum 
torpor olhei vagarosamente em volta: encontrava-me 
numa espécie de clareira, ou talvez platô decorrente de 
aterro, ao meio do qual erguia-se uma mansão na forma de 
U, em estilo colonial, edificação muito bem conservada. A 
cercar o platô, menos na saída para uma estrada de 
cascalhos, um muro de pedra de cerca de 40 ou 50 centíme-
tros de altura e aí pelos 30 cm de largura. Para fora do muro, 
mata fechada com árvores altas que impediam ver-se o 
firmamento além de um estreito círculo.

Solilóquio: - Terei morrido? Será isso o céu? E a casa do 
senhor será aquela? Onde estão os santos ministros de 
deus e o seu exército de arcanjos, querubins e anjos?

Quais: Nesse cismar, eis que uma mulher alta de seus trinta 
anos toda vestida com mantos brancos, em passos lentos 
se aproxima de mim; agacha-se próximo de onde eu estava, 
toma minha mão direita na sua, beija-a e pergunta-me: 

- Quem é o Senhor? 

Respondo-lhe com outra pergunta:

- Onde estou? Parece-me que, tal Parsifal, me perdi na 
floresta e desmaiei de tão cansado.
- Mas o Senhor está sentindo-se bem agora?
- Não de todo. Ainda que lúcido experimento alguma 
prostração...
- Seu nome, por favor?

- Meu nome? Meu nome... Mas como é que me chamo? 
Desculpe minha senhora, esqueci.
- Onde o Senhor mora?
- Lembro-me de que era numa grande cidade de muitos 
arranha-céus, com mais de dois milhões de pessoas, uma 
cidade grande e suja, muito suja, e por isso malcheirosa.  
Por enquanto é do que me recordo.
- Deve ser uma das cidades no Brasil dirigidas pelo partido 
dos trabalhadores...
- Como é que é?!?
- Nada não. Esqueça. Ocorreu-me a pergunta em vista de 
algumas notícias que recebi recente do Brasil.
- Sobre o “mensalão”?
- O Senhor também sabe desse tipo de sujeira?
- Lembro-me de alguma coisa... Daquele tribunal que se 
proclama supremo... em especial do seu Presidente que 
esbravejou alto e bom som nos microfones das tevês do 
meu País: “Nada existe acima deste Tribunal!”
- Não excetuou nem o Senhor Deus? 
- Nem também o povo, em nome de quem todo poder é 
constituído, e exercido!
- E há quem pense que a consciência coletiva é o décimo 
superior das mentes, e que tudo mais deve está debaixo 
dela. O Senhor Deus...
- Não entendi essa. 
- Não entendeu? O Senhor não está a sentir dor nenhuma?
- Muita dor, senhora! Muita. A dor da decepção, espasmos 
de frustração, agonia da ingratidão, náuseas de traições... 
- Qual é sua idade?
- Nem sei direito, porém mais de noventa anos, disso estou 
certo.
- Mas o Senhor aparenta menos idade.
- Do lugar de onde eu vim aprende-se muito cedo que “as 
aparências enganam”.
- E de qual lugar o Senhor pensa que vem?
- Talvez do inferno!
- Mas no inferno não existe ninguém vivo. Todos foram 
queimados no fogo!
- E a senhora acha que estou vivo?
- Estamos a conversar, não estamos?
- E os mortos não conversam entre si?
- Além de muitas moradas, na Casa do Senhor Deus há 
muitos tipos de vidas; o Senhor Deus, por exemplo, 
ressuscitou seu único Filho...

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